Vagabond: Miyamoto Musashi e a Batalha Contra o Ego

Nicolas França
5 min readMay 1, 2021

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Vagabond (Takehiko Inoue)

Qual a meta mais ambiciosa que um indivíduo pode ter? Provavelmente ser indiscutivelmente o melhor naquilo que faz. Entretanto, é possível afirmar que para que se haja uma remota chance de conquistar esse feito, ele há tempos deixou de ser um desejo e tornou-se uma obsessão, um vício, o único e frágil fio que o conecta à realidade compartilhada pelo resto das pessoas. Magnus Carlsen, Usain Bolt, Michael Phelps, provavelmente nenhum deles teria sido conhecido senão pelo esporte em que se consagraram. Os sacrifícios que estes homens sofreram, tudo aquilo que tiveram de abrir mão e a inestimável quantidade de horas que passaram decepcionados consigo são apenas parte da história que não é de todo mostrada ao público. Neste texto, falaremos sobre o maior samurai que já existiu, Miyamoto Musashi, e uma das muitas obras que ele inspirou (ainda que “inacabada”, já que a obra entrou em hiato, ainda que Inoue tenha apresentado o “último capítulo” em uma exposição), o mangá Vagabond.

Nascido ao fim do período do Japão Feudal, na vila Miyamoto, Shinmen Takezo teve suas primeiras lições com a espada com seu violento pai, Shinmen Munisai. Aos sete anos, Takezo já havia fugido de casa graças a uma reação raivosa de seu pai que ameaçou sua vida, tendo então um amadurecimento notóriamente precoce. Aos treze anos, o menino ganhou seu primeiro duelo contra o famoso espadachim Arima Kihei. Claramente com um amadurecimento cercado de violência, aos quinze anos o futuro Musashi já optava por trilhar o caminho do “Guerreiro Peregrino” (comum à época, no qual diversos samurais peregrinavam pelo país em busca do aperfeiçoamento filosófico e guerreiro), ingressando no exército aos dezessete e participando de batalhas marcantes da época como a Batalha de Sekigahara. O samurai budista é reconhecido como o maior de todos os tempos principalmente por nunca ter perdido nenhum duelo dos mais de sessenta que travou durante toda sua vida.

Ainda que não seja 100% fidedigno à história real de Miyamoto Musashi, o mangá Vagabond traz complexas reflexões sobre o orgulho, o sacrifício e a paz interior. Na obra, Musashi é mostrado quase como um animal selvagem em sua juventude, herdando de maneira involuntária os delírios de seu pai, de se tornar “o invencível sob o sol”, importando-se apenas em provar a si mesmo que ele consegue (e tem a obrigação de) ser melhor que seu pai, que equivocadamente o fez acreditar que, de fato, era o melhor samurai de sua época.

É desnecessário falar que não demora muito para o protagonista encontrar guerreiros e mestres cuja diferença de habilidade era anteriormente inimaginável. É notório o desenvolvimento do personagem durante a obra, que demonstra um amadurecimento constante ao longo do tempo. Ainda, o mangá traz ao público uma diferente perspectiva de progresso; enquanto outras obras focam no desenvolvimento de novas técnicas e melhoras de habilidade dos personagens para superar seus obstáculos, Vagabond declara que a única diferença entre o protagonista e seus adversários é seu estado de espírito. Miyamoto sempre teve a habilidade necessária para ganhar de seus adversários, mas faltava com a inteligência emocional para tal. Claro que houve treinamento físico incessante para lapidação de suas técnicas, mas não faz o menor sentido acreditar que ele era o indivíduo que mais treinava em todo o Japão. Isto é demonstrado nos diversos encontros do protagonista com os mestres de seus respectivos estilos, nos quais são vistos mais reflexões sobre sua caminhada até aquele momento do que aprimoramento de técnicas de combate.

A obra, ao longo de seus arcos, vai demonstrando paulatinamente seu viés budista no modo de ver as vicissitudes da vida. Mesmo cada vez buscando oponentes mais fortes para duelar, em nenhum momento a obra ousa comparar o protagonista aos seus mestres, inclusive com o mesmo reconhecendo, em certo momento, um destes como o “verdadeiro invencível sob o sol”, que o responde falando que “’invencível’ é apenas uma palavra”. Conforme o fim da obra se aproxima, cada vez mais Musashi entende o peso que a busca por esta palavra traz e passa a trocar seus adversários externos pelo seu próprio ego, chegando a um ponto em que ele não mais se importuna com eventuais desafiantes.

Por outro lado, como o coprotagonista da história, é apresentado Sasaki Kojiro, outro notável samurai da época e responsável pelo duelo considerado mais importante da vida de Musashi. No mangá, Kojiro é representado como um deficiente auditivo de nascimento, conseguindo apenas se comunicar através da escrita básica. Por não sofrer influências externas devido à sua deficiência, o samurai vem como uma alegoria para o isolamento que presencia uma pessoa obcecada. O samurai nunca conheceu nada além da espada, não teve nenhuma influência da convivência humana e gastou seu tempo apenas com o aprimoramento pessoal. Sasaki Kojiro era a personificação do estado de espírito que Musashi buscava.

Vagabond, em seus traços impecáveis e inigualáveis em todo o mundo dos mangás, traz uma mensagem essencial a uma juventude que se define pelo ego, foca em demasiado em seus erros passados e cujas ambições são, na maioria das vezes, intangíveis: A felicidade que você acredita que sentirá ao chegar no topo não é nada se não uma mentira; ela é oriunda exclusivamente da imagem que um indivíduo tem de si. Se quiser tal paz de espírito, foque no único aspecto de sua vida sobre o qual você tem controle: você mesmo. As outras pessoas não são suas inimigas e, na realidade, na maioria das vezes nem se importam com a sua existência.

Compreenda que o mundo é vasto o suficiente para sempre haver alguém melhor que você mas que, ainda assim, isso não o torna inferior. Você tem tudo aquilo necessário para seu desenvolvimento próprio e a paz de espírito que busca.

Ah, e sorria mais!

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